
Antes de virar "o Beatle quieto", Harrison já era o garoto obcecado por skiffle e rock and roll que chamou a atenção de Paul McCartney na adolescência. Foi esse repertório que o levou até John Lennon e ao embrião dos Beatles. A história do teste no andar de cima de um ônibus, em que George impressiona ao tocar o riff de "Raunchy", mostra como ele sempre foi mais ligado a fraseados e pequenos detalhes do que a exibicionismo de palco.
Anos depois, com os Beatles já estabelecidos, os Rolling Stones surgiram como outro nome forte vindo da Inglaterra, primeiro mergulhado em blues, depois cada vez mais centrado nas composições de Mick Jagger e Keith Richards. A imprensa adorava falar em rivalidade, mas na prática havia respeito mútuo: os Beatles cederam "I Wanna Be Your Man" para os Stones gravarem, e Harrison desenvolveu uma admiração particular pelo trabalho de Keith na guitarra rítmica.
Em uma das entrevistas reunidas no livro "George Harrison on George Harrison" (via Far Out), ele deixou bem claro que ao invés de medir habilidade pela quantidade de notas por segundo, olhava para o conjunto: canção, arranjo, função dentro da banda: "Sabe, na verdade acho que ele provavelmente é um dos melhores guitarristas de rock and roll na base. Não acho que ele seja muito bom de solo, mas o que a gente faz é fazer discos, e os discos têm boas partes de guitarra, boas músicas, boas letras ou o que for - basicamente você faz discos".
Na mesma fala, ele citou a faixa que, para ele, resumia essa ideia de forma quase perfeita. Ao comentar o trabalho de Keith, completou: "Pra mim ele não é aquele tipo de guitarrista que só sai por aí tocando guitarra. Ele escreve músicas, ele faz discos e, dentro disso. sabe, você não consegue bater o riff de 'Satisfaction', sabe o que quero dizer? São essas coisinhas simples, e eu gosto enormemente do Keith".
Se para Harrison, "(I Can't Get No) Satisfaction" tinha exatamente o tipo de simplicidade eficaz que ele valorizava: poucas notas, mas colocadas no lugar certo, do outro lado, Keith Richards também sempre falou de Harrison com carinho. Em depoimento reproduzido pelo site Harrison's Stories, o guitarrista dos Stones comentou: "A questão é: você tem o Jimi Hendrix, você tem o Eric Clapton, e depois você tem os caras que sabem tocar com bandas. O George era um cara de banda, de equipe". Em seguida, ele criticou a busca por solos intermináveis: "As pessoas se empolgam com guitarras solo e feedbacks. E no fim das contas é tudo histrionismo". Na visão de Keith, o mérito de Harrison estava justamente em servir à música: "O George era um artista, mas também era um artesão do caralho".
"Satisfaction", por sua vez, virou um capítulo à parte dentro da própria história dos Stones. Keith sempre contou que o riff apareceu numa madrugada, registrado meio no susto num gravador de fita ao lado da cama. Já Mick Jagger, em entrevista à Rolling Stone em 1995, resumiu o impacto da canção: "Foi a música que realmente fez os Rolling Stones, nos tirou de apenas mais uma banda e nos transformou numa banda enorme, monstruosa. Tem um título muito marcante. Tem um riff de guitarra muito marcante. Tem um som de guitarra ótimo, que era original naquela época. E captura o espírito da época, o que é muito importante nesse tipo de canção".
Nem Harrison nem Richards costumavam ser colocados no mesmo patamar técnico de nomes como Hendrix ou Clapton, e eles próprios pareciam pouco preocupados com isso. O que os aproximava era outra coisa: a ideia de que uma boa canção, um riff simples e uma banda entrosada dizem mais do que qualquer solo cheio de firulas. Quando George diz que "você não consegue bater o riff de 'Satisfaction'", ele não está apenas elogiando uma faixa dos Stones: está apontando para um tipo de guitarra que conversa com a música como um todo, e que, meio século depois, continua servindo de referência para quem tenta tirar som marcante com o mínimo de nota possível.